Agosto 2006
Alice via o seu corpo deitado numa cama de hospital, alguém gritava na sala ao lado. Um grito agonizante cheio de dor. As lágrimas caíam no chão como se fossem pingos de chuva num dia de tempestade. Queria pegar na mão daquela mulher que chorava. Queria acalmar aquela mãe que acabara de perder a filha num acidente. A morte cerebral antecipara-se à morte do coração. Este ainda batia. O mesmo coração que seria seu! O mesmo coração que o namorado iria tirar daquele corpo que tão bem conhecia e que iria colocar no seu peito. Queria ver-lhe o rosto. Queria ver a dor nos seus olhos por ter perdido a amada. Sabia que os seus olhos eram de um azul intenso e cheio de vida. Queria falar. A sua alma saíra do seu corpo, vagueava por aquele hospital. Via a agitação, sentia a dor alheia. Queria acordar, queria parar de sentir…
Alice acordou sobressaltada!! Tinha a mão sobre o coração, este batia descontroladamente como se quisesse fugir-lhe do peito. Respirava com muita dificuldade. Queria parar com aqueles pensamentos. Fechou os olhos com força, felizmente para si há muito tempo que não tinha premonições. A avó tinha-a ajudado a lidar com aquele dom desde que era muito pequena mas mesmo assim não o aceitava e recusava-se a aceitar que o que via em sonhos um dia se tornaria realidade.
Agosto 2008
Ângela lia o jornal vagarosamente, não sabia bem porquê mas as notícias trágicas faziam-lhe subir a adrenalina. Via a fotografia de um carro totalmente irreconhecível, pelo que repórter dizia não tinha havido mortes mas a condutora de 30 anos encontrava-se em morte cerebral o que constituía um dilema para a família directa. Desligar ou não desligar as máquinas que a mantinham a respirar?
Alice aproximou-se com o tabuleiro onde trazia os cafés e as natas para apreciarem a pausa do meio da manhã.
“-Muito gostas tu de ler essas coisas! Devias ler coisas mais animadoras! Menos trágicas! Tragédia por tragédia já basta o raio de trabalho que temos!”
Ângela respirou fundo. “-Faz-me pensar na sorte que tenho! Esta rapariga está em morte cerebral!”
Alice tocou no jornal, flashes passaram na sua mente. Um carro preto bateu contra o separador central, deu várias voltas no ar, alguém gritava por ajuda! Os gritos pararam. Sangue! Dor! Silêncio! A morte vagueava e reclamava aquela alma como sua. Afastou a mão como se o jornal estivesse a ferver e a tivesse queimado. Ia acontecer!
“-Estás bem?” – Ângela estava preocupada com a amiga, mais porque o cansaço excessivo dos últimos dias não era nada normal.
Alice olhou para a amiga, sabia que ia desfalecer. Tinha visto o que ia acontecer há duas noites. O seu coração… Precisava de um coração novo. Tinha visto outra vez aqueles olhos azuis a olharem para si. Uns olhos cheios de vida e muito intensos. Havia dor e lágrimas nos olhos mas amor no coração.
Alice só teve tempo de pousar o tabuleiro e caiu redonda no chão.
Abriu os olhos lentamente. As luzes fortes do tecto deixavam-na sem perceber onde estava. Os sons e os cheiros misturavam-se entre si e confundiam-na ainda mais. Ouvia um bip bip. Olhou lentamente para o lado. Estava no hospital, o bip agudo vinha de uma máquina a seu lado. Estava uma enfermeira aos pés da cama. Ouvia gritos e um choro que não parava por nada. Uma voz de homem, uma voz calma e que parecia apaziguar muitas tempestades, tentava acalmar a mulher que chorava. Lembrou-se do acidente, da morte, dos olhos azuis como o mar… Lembrou-se do seu coração frágil e que iria ser trocado. Respirou fundo. A sua vida ia ser fortalecida por causa da morte daquela rapariga. Iria encontrar um grande amor porque o homem dos olhos azuis tinha acabado de perder o seu. As lágrimas começaram a escorrer pelos seus olhos. Não podia aceitar isso.
“-Como se sente?” – A enfermeira aproximou-se de si. “-O doutor João já vem falar consigo. Evite falar para não se cansar.” – Sorriu.
Alice acenou afirmativamente com a cabeça e ficou a ouvir aquele choro e a voz calmante daquele homem.
“-Eu amava-a muito! Mas sei que neste momento apenas o corpo dela está ali. Ela já partiu Manuela. Tem que aceitar! Aceitar e dar ordem para que a máquina seja desligada. O coração dela poderá ajudar a mulher que está na cama ali ao lado! Pense Manuela! Pense. Eu também a amava…”
“-Não posso matar a minha menina. Quero a máquina ligada.”
“-Ela já está morta.” – Disse desesperado e cheio de dor.
As vozes calaram-se. Alice fechou os olhos. Sabia bem o que ia acontecer.
Sentiu uma mão quente sobre o seu peito. A respiração de quem estava a seu lado era lenta e ritmada. Havia tanta dor naquele toque. O seu coração batia lentamente. Quando aqueles dedos acariciaram o bater do seu coração voltou a ver. Estavam num jardim verde, as crianças corriam animadas, o labrador ladrava atrás delas. Vinha de mão dada com o homem de olhos azuis, o seu marido, o médico que a salvou. Sorriu e levou a mão ao coração, sentiu bater com mais força, com muito amor.
Abriu os olhos lentamente. A primeira coisa que viu foram os olhos dele. Azuis, intensos e cheios de vida.
“-Olá.” – Disse a custo. O médico tirou-lhe a mão do peito. Sorriu-lhe. Um sorriso triste.
“-Como se sente?”
“-Como se me tivessem tirado o coração e colocado um novo!”
O médico sorriu. Os seus olhos azuis ficaram mais intensos, mais vivos. “-Vai sentir-se melhor dentro de dias. Prometo!”
“-Eu sei!”
Agosto de 2014
Esperança e Salvador corriam pelo jardim. Davam risadas e tentavam apanhar o labrador de pelo preto e lustroso que corria na sua frente.
“-Mamã!! Mamã! Vou correr como o Flecha!” – Salvador corria mais do que aquilo que as suas pernitas de 4 anos permitiam.
Alice deu a mão a João. Tinha tudo o que sempre sonhara. Uma família. “-Tem cuidado querido! Podes cair!”
João acariciou-lhe os dedos e beijou-lhe os nós dos mesmos. “-Quando há seis anos, naquela cama de hospital, me disseste que ias casar comigo e que íamos ter 2 filhos, fiquei tentado em chamar o psiquiatra de serviço!”
Alice sorriu. “-Eu sei que te assustei… Mas tinha que te dizer. Amei-te assim que abri os olhos e eles encontraram os teus.” – Sentiu-se a enrubescer.
João colocou-lhe as mãos na face, puxou-a para si e beijou-a longamente. “-Ainda bem que me ensinaste a amar novamente…”