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Marta Velha - Writer

Marta Velha - Writer

Ler em Dezembro!

23.12.23, Marta Velha
Ler em Dezembro
Livro 'Amor de Deus'
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Sobrevieram-me pavores; é perseguida a minha honra como pelo vento; e como nuvem passou a minha felicidade.
Jó 30-15
 
 
A noite apresentava uma calma fora do vulgar. Uma calma perdida quando se começaram a ouvir os berros.
-Váa, abreee a portaaa!! – As pancadas ecoavam no espaço como trovões, o barulho era ensurdecedor. -Assim enervaaaas-meee mais!! Abre a merda da portaaa!! – E de novo as pancadas que invadiam o espaço. -Abreee sua cabraaa do caraçaaas!! Ouvisteees?? – Bateu novamente na porta com toda a fúria que sentia. -Vaiiis levaaar dois pares d’estaloooos!! – Nesta altura dava berros e pontapés na porta.
 
A vizinha do lado assistia a tudo com algum receio. Sabia-o um homem violento e de mau carácter. Sabia que as discussões entre ambos eram constantes. Muitas vezes vira Maria pisada mas esta dava sempre uma desculpa – que era desastrada, que tropeçara. Às vezes ouvia-lhe os gritos desesperados.
-Anh, senhor Luís. – Disse a medo.
-Qu’é que foi? – Berrou.
-A Maria não está…
-Essa cabra já saiu? A esta hora? Ela sabia muito bem que não levei a minha chave…
-Anh, pois… Ela saiu ontem de manhã. Muito cedo! Até pensei que fossem viajar. Ela levava uma mala e depois nunca mais a vi!! – Encolheu-se.
-O quêee??!! – E num acto furioso deu um pontapé na porta arrombando-a.
A casa parecia-lhe normal. Tudo arrumado e a cheirar a limpo. Tal como ele gostava. Faltava apenas o cheiro a comida. Maria era boa cozinheira. Ele ensinou-a bem. Teve que lhe bater mas depressa ela aprendeu como ele gostava de tudo…
Olhou em redor acabando por ir até ao quarto. Abriu o armário, numa primeira vista parecia estar tudo mas quando remexeu a roupa verificou que estava em falta alguma coisa. Bateu com a porta. Estava furioso. A mala de viagem também tinha desaparecido.
-Cabraaa!! Como pode sequer pensar em fugir de miiiim?? – Levou as mãos à cabeça.
 

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22.12.23, Marta Velha
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Livro 'Amor de Deus'
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Francisco brincava com o copo. Olhou para o padre Zé. Nunca lhe conseguira esconder nada. Nunca! Sabia que o padre Zé lhe lia a alma.
“-Não consigo disfarçar, pois não?” – Sussurrou timidamente.
“-Ah rapaz. Conheço-te desde que era um gaiato de fraldas. Não vale a pena negares aquilo que eu sinto em ti.”
“-Eu sei padre Zé, eu sei. Ando numa luta interior muito grande. As dúvidas surgiram todas agora… Ao fim destes anos todos…”
“-É por causa do celibato?” – Interrogou.
“-Indirectamente sim…” – Olhou para o padre Zé que partia a chouriça em rodelas e as metia num pão. Deu uma sandes a Francisco. “-Mas não é o mais importante. A família ganhou um valor ainda maior depois do que aconteceu à minha mãe…” – Limpou os olhos.
“-Francisco a culpa não é tua! Era imprevisível!!”
“-Toda esta dor durante tantos anos… guardada!! A dor prendeu-a como se ela fosse uma criminosa. Perdi o meu irmão, a minha mãe e…”
“-E achas que agora não tens nada?” – Disse abruptamente.
Francisco olhou novamente para o padre Zé mas não precisou de responder. O padre Zé sabia sempre de tudo! Depenicou o pão e comeu algumas rodelas de chouriça.
O padre Zé apercebeu-se do seu mau estar interior. Que poderia fazer por ele?
“-Mas há alguma rapariga que te tenha enchido as vistas?”
“-Padre Zé!! Não, caramba!! Não há!!” – Benzeu-se. “-É apenas porque…”
“-Porque perdeste a única razão que te prendia ao facto de quereres ser padre…”
 

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21.12.23, Marta Velha
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Livro 'Amor de Deus'
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Nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus nosso Senhor.
Romanos 8 – 39
 
Francisco caminhou lentamente até casa do padre Zé. Desde que se conhecia que fazia aquele caminho. Lentamente e a apreciar tudo em redor. Sabia que o encontraria no jardim a tratar de alguma coisa.
“-Então padre Zé! Tudo bem?” – Saudou calorosamente.
“-Oh Francisco, entra!”
O padre Zé morava muito perto da igreja, numa casa modesta com um quintal nas traseiras e um pequeno jardim na frente. Francisco conhecia bem aquela casa, frequentava-a com o seu irmão desde criança. Correram e esfolaram os joelhos naquele chão vezes sem conta. Subiram às árvores para ir buscar a bola que se perdera entre os ramos. E quantos vidros de janelas partiram nas brincadeiras que faziam? Tinha perdido a conta.
“-Mais uma visita!”
“-Sabe bem que passo por cá todas as semanas. A sua companhia já é um vício para mim.”
“-E vieste na hora certa. O Quim da Pipa trouxe-me uma pomadinha!! Oh Deus tenha piedade!!” – Benzeu-se e olhou para o céu.
Francisco sorriu.
“-Já para não falar das chouriças da Ti Jaquina. Mas entra, falamos lá dentro.”
 

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20.12.23, Marta Velha

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Livro 'Amor de Deus'

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     Maria levou a chávena à boca e bebeu com satisfação. Não se recordava da última vez que tivera um pequeno-almoço tão sossegado e silencioso e sem sentir medo. Como aquele café com leite era delicioso. Fechou os olhos com o prazer que teve ao saboreá-lo.

     Francisco voltou a reparar nas nódoas negras que tinha no braço. Aquela cor roxa incomodava-o.

     “-Caiu?”

     “-Desculpe?!” – Assustou-se.

     “-No seu braço, tem um hematoma. Caiu?”

     “-Anh…” – Tentou puxar a manga da camisola para baixo. “-Sim, sou um pouco desastrada.” – Baixou o olhar.

     Francisco viu a mentira estampada no seu rosto, os olhos mostraram dor. Tanta dor como ele nunca tinha visto. A mágoa assombrara-lhe os traços gentis. Ficou rígida e tensa. O que é que se passava?

 

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16.12.23, Marta Velha

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     Francisco olhava atentamente para Maria. A sua tez clara e o seu olhar triste e distante fascinavam-no. Mais do que aquilo que era para ele possível. Nunca se atrevera a olhar assim tanto para uma mulher. Nem podia! Era pecado! Mas ela era especial. Tão especial…

(...)

Alzira surgiu com um tabuleiro cheio – pão, leite, café, manteiga, doce, bolo de laranja, tostas. Colocou tudo na mesa e foi buscar chávenas e talheres.

     Francisco serviu café e leite a Maria. O silêncio dela contrastava com a sua vontade de falar, a sua tristeza era contrária à sua alegria. Que esconderia aquele olhar? Porque teria medo de falar ou de o olhar? Porque será que parecia estar sempre a olhar para trás, com medo de alguma coisa?

 

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15.12.23, Marta Velha

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     Maria sentia-se incomodada com a presença daquele homem, não por ele impor respeito mas porque era bastante atraente e simpático. Atraente demais!

     “-Pronta para o seu primeiro dia de trabalho?”

     Maria baixou o olhar e limitou-se a responder um simples: “-Sim.”

     “-Nelita, acompanha-nos num café?”

     “-Obrigada, senhor Francisco. Acabei de beber um com o senhor Amorim. Hoje trouxe-me flores!!” – Torceu os olhos.

     “-Oh Nelita devia reconsiderar o pedido de casamento!!” – E deu uma gargalhada.

     Nelita bateu com a mão no jornal: “-Não brinque!! Diz que me vai trazer o anel de noivado que era da mãe!” – Fez uma breve pausa. “-Um dia ainda apareço como notícia neste jornal ‘Funcionária de lar tenta bater em velhinho que a assediava’!!” – Ficou muito séria.

     “-Oh Nelita! Tenha dó de mim!” – Meteu a mão no braço de Maria. “-Vamos Maria, acompanhe-me no pequeno-almoço!”

     Maria sentiu-se incomodada com o seu toque mas sem o dar a entender libertou o braço. Sentia-se perdida. Não merecia que a tratassem assim. Não merecia que fossem simpáticos com ela.

     “-Não se assuste com a Nelita, é uma excelente senhora! Ah, eu peço desculpa mas não comi nada antes de sair de casa e como adoro conversar, não gosto de comer sozinho, por isso…” – Olhou-a com uns grandes olhos castanhos, cheios de vida e muito iluminados e com um sorriso quase contagiante.

 

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14.12.23, Marta Velha

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    Ouvia o barulho das águas e lembrava-se dos passeios que fizera com o avô junto ao rio. O avô pescava enquanto ela corria e brincava. Apanhava sempre flores para a jarra da cozinha. Virou-se para onde vinha o barulho, tinha que ir lá.

      A paisagem tinha mudado bastante. Havia mais casas, mais movimento, mais cor. Mas mesmo assim tudo lhe parecia familiar. Sempre que sentia um barulho a seu lado, tinha medo. Tremia. Lembrava-se sempre de Luís a aparecer e a bater-lhe sem razão aparente. Olhou por cima do ombro. Talvez tivesse sido apenas o vento. Talvez…

 

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08.12.23, Marta Velha
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O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã.
Salmos 30 – 5
 
Acordou cedo e com uma tranquilidade que há muito não sentia. Como se tivesse dormido na melhor cama do melhor hotel do mundo. Como era bom dormir sem preocupações. Olhou para o quarto. Sorriu. Podia não ter luxo mas tinha paz. Uma paz que há muito não sabia o que era. Não tinha chorado, não se sentia arrependida. Abraçou-se a si mesma. Estava confortada.
Tinha sentido frio de noite. Olhou para o tecto e viu novamente as telhas partidas.
“-A minha sorte é que não está a chover.” – Olhou para o relógio, sete da manhã.
Sabia que demorava cerca de meia hora a pé até ao centro, mas não tinha outro meio de transporte. Convencia-se a si mesma que andar a pé fazia bem.
Arranjou-se sem pressas e bebeu um pacotinho de leite e comeu umas bolachas. À luz do dia a casa tinha outro aspecto. Ainda tinha muitas limpezas por fazer, muita coisa para tentar arranjar como pudesse. Podia usar objectos antigos dos avós. Eram perfeitos para decorar a casa e para lhe darem algum conforto.
Saiu e ficou a olhar à sua volta, o ar fresco da manhã fê-la sorrir. Havia muita vegetação e o ar era tão puro.
 

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07.12.23, Marta Velha

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     Não sabia em que estado estava a casa mas esperava que estivesse no mínimo razoável para poder habitar lá. Era só isso que pedia!

     Sentia-se cansada mas quando avistou a casa essa sensação desvaneceu. Parou no caminho e olhou para a mesma, por instantes recuou no tempo. Para um tempo onde foi feliz e onde se sentia segura nos braços do avô. Fechou os olhos e sentiu o cheiro do cozido à portuguesa que o avô fazia no velho fogão de lenha. Jurava que sentia o abraço apertado que o avô lhe dava. Jurava que sentia as picadelas no rosto quando a beijava. Limpou as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto, controlava-se para não chorar convulsivamente. Não aguentava a tristeza que lhe invadia o peito. Respirou fundo e continuou até chegar ao velho portão de ferro.

     “-Agora sim, Maria, podes começar de novo.” – Disse para si mesma enquanto abria, a custo, o portão. Queria acreditar que ao entrar com o pé direito teria sorte. Muita sorte para tudo o que viria a seguir.

     Olhou para o jardim. A cerca de madeira estava bastante destruída. Em algumas partes já nem existia. Lembrava-se de o avô lhe contar como a construiu e a ajuda que teve de um vizinho para tal. As ervas do jardim chegavam-lhe aos joelhos, as roseiras estavam mortas e o limoeiro quase seco. Como a avó gostava daquelas rosas. Orgulhava-se de as ver pela janela e sentir-lhes o cheiro a metros de distância. Apanhava-as e colocava-as numa jarra na janela da cozinha. O limoeiro era o seu orgulho. Sempre de folhas bem verdes e cheio de pequenos pontinhos amarelos. 

 

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06.12.23, Marta Velha

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     Maria entrou na pequena loja do largo e sentiu-se bastante observada. Andava a medo, não queria que a sua presença fosse notada. Ao balcão estava uma senhora que aparentava pouco mais de cinquenta anos e com ela uma outra bem mais velha, vestida de um preto muito carregado. Deixou a sua mala na entrada e olhou para o relógio. A loja fechava às vinte horas, o que ainda lhe dava algum tempo para percorrer as prateleiras e procurar o que necessitava. Podia escolher à vontade e comparar preços. Achava que conhecia aquele espaço. Será que tinha ido lá com o avô? Não tinha a certeza. Havia memórias que pareciam ter sido apagadas da sua mente. E isso magoava-a.

     “-Conheces a rapariga, Rosinha?” – Sussurrou enquanto via Maria afastar-se entre as prateleiras.

     “-Nunca a vi antes…”

     “-Hoje estava no largo a falar com o Manel da Fonte, mas ele recusou-se a dizer-me quem era ou o que queria…” – Cruzou os braços. “-Será familiar de alguém de cá?”

     Maria passeou-se por entre as prateleiras. Apesar de ser um minimercado pequeno tinha de tudo um pouco. Procurava o essencial para uns dias. Contou o dinheiro que tinha, pouco mais de cinquenta euros. Tinha conseguido juntar o dinheiro através das gorjetas e sem Luís saber.

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