Conto de Natal! :)
Anacleto estava sentado na sua velha poltrona, a lareira acesa dava um ar iluminado ao espaço. Ali, na sua biblioteca, gostava de pensar. Apesar dos seus 80 anos não se podia queixar! O maior desgosto da sua vida tinha sido a perda da sua Madalena. Mulher rija como ele afirmava tantas vezes! Aquela mulher conseguia reunir na mesma mesa 5 filhos e 4 netos! Não havia um único Natal que estivessem separados, mas agora… A morte ceifara-lhe a vida e tinha trazido solidão a todos os natais depois disso.
Olhou novamente para o espaço, engraçado o jogo de sombras que o fogo ia fazendo à sua volta. Assim, mais atento, quase que jurava que as mesmas eram as personagens dos seus livros que tinham saltado das páginas e que agora representavam as histórias só para ele.
Sorriu. Sabia de cor o nome de cada livro que ali tinha. Não eram todos dele! Nada disso. Aqueles livros representavam a história da sua vida. Da vida do seu grande amor. Da vida dos seus filhos e muito recentemente da vida dos seus netos. Ah, como era bom recordar cada momento em que cada um daqueles livros tinha sido oferecido.
Cada um deles tinha uma dedicatória sobre essa mesma ocasião. Os que ele oferecia tinham sempre um poema ou frase do seu autor favorito, Fernando Pessoa.
Pensou com tristeza nas palavras do seu neto mais velho ‘Oh vô, os livros pertencem ao século passado! O que está a dar são as novas tecnologias! Telemóveis, tablets, computadores xpto! Eu nem gosto de ler!’
Lembrava-se do Natal de 2014, o neto estendeu-lhe um embrulho retangular. De sorriso de orelha a orelha pensou que seria mais um livro! Ficou engasgado quando abriu lentamente o papel e viu uma caixa preta com letra douradas. Aquilo não era um livro! Era um telemóvel! O rapaz estava tão entusiasmado como ele estaria a receber um livro!
‘Vô! Isto é o top dos telemóveis! Bué da fixe! Aqui também podes ler! É só sacar os livros e lês em qualquer lado!’
Lembrava-se tão bem da sua cara a olhar para o aparelho preto e tão pequeno! Ler naquilo? ‘Rapaz! Sabes lá a emoção que é abrir um livro novo e cheirá-lo? Ou a sensação que é de ter um livro acabadinho de sair de um alfarrabista com aquele cheiro a velho? E tentar adivinhar porque mãos já andou aquele tesouro? Telemóveis? Para que quero eu isto rapaz?’
‘Vô, para ler!’
E agora aquele aparelho pequeno e preto era a única companhia que tinha no Natal desde essa altura! Recebia ali mensagens dos filhos e dos netos! Recebia ali as fotos que eles tiravam!
Abanou a cabeça. Aquilo tinha que acabar! Onde já se tinha visto os pequenos aparelhos dominarem o mundo e substituírem o calor de um abraço? Ou pior, substituírem as folhas de um livro? Este Natal recusava que a sua única companhia fosse aquela coisa pequena e sem jeito nenhum! A sua missão era que os seus netos gostassem de livros e que a sua família voltasse a estar ali toda reunida, naquela mesma biblioteca à procura de tesouros!
Olhou para as prateleiras. As sombras eram sem dúvida alguma as personagens dos seus livros, mas agora olhavam-no e davam-lhe apoio! Iria escolher muito bem os livros para colar os pedaços dos corações dos seus familiares! Tinha a certeza que ali, naquelas velhas prateleiras, havia cura para todos os males! Até para si! Cada um dos seus filhos e dos seus netos iria receber um livro por correio. Já que o neto se entusiasmava por receber correio eletrónico de certeza que ficaria muito mais entusiasmado por receber uma carta a sério!
Aquele Natal ia ser diferente!
O que tinha em mente ia roubar-lhe umas boas horas, mas nada que o assustasse! Queria um Natal sem tecnologias, com todos a rodear a mesa, a conversarem, a rirem, a distribuir presentes, a trocar cartões de papel em vez de cartões virtuais. Só pedia a Deus mais um Natal assim! Os seus netos iam recordar tudo aquilo mesmo que no ano seguinte os telemóveis voltassem a ganhar!
Sempre tivera os seus livros arrumados pela ordem que os mesmos iam entrando pela porta, por isso não ia ser nada difícil procurar os que pretendia!
Só tinha que se lembrar. Percorreu a estante lentamente. Os seus olhos cansados iam percorrendo as pequenas letras e as cores coloridas das lombadas. Entusiasmou-se quando descobriu o primeiro! Tinha sido editado em 1959! O ano do seu casamento. ‘Gaivotas em terra – David Mourão Ferreira’. Aquele livro ia percorrer cinco casas. As casas dos seus filhos. Aquele seria o primeiro, os restantes livros que procuraria tinham edições de 1961, 1963, 1965, 1967 e 1971! O ano do nascimento de cada um dos seus filhos.
Não sabia que tempo demorou, quando deu por si estava sentado no chão em frente à lareira. Tinha aberto cada um daqueles livros, tinha lido a dedicatória que ali tinha escrito. Sorriu quando leu as palavras que cada um dos seus filhos também tinha escrito. Como é que os livros podiam acompanhar a história de uma vida? Ali, naquelas quatro paredes havia tantas e tantas histórias para contar! Tantas frases escritas em folhas amarelecidas pelo tempo. Tantos autores que parecia que tinham escrito aquelas palavras para ele. Para dedicar ao amor da sua vida. Aos seus filhos…
Faltavam quinze dias para o Natal, o tempo necessário para colocar tudo em prática. Tinha comprado cartões de Natal, dos verdadeiros como disse ao funcionário da papelaria! Leu e releu poemas e frases de Fernando Pessoa, em cada cartão tinha escrito uma. Tinha tudo para dar certo! Tudo…
‘Matar o sonho é matarmo-nos!’ – Era assim que se sentia, se matasse o seu sonho de ter todos reunidos, era como se se matasse!
‘Bom dia! Oh tempo que não falávamos!’
‘Ia enviar-te um e-mail!’
‘Ias?’
‘Ia! Recebi um livro e um pedido muito estranho do pai! Será que ele está bem?’
Joana deu uma gargalhada! Para o seu irmão Paulo tudo se resumia ao mau estar do pai!
‘Claro que está bem! Já falaste com os outros? Será que receberam alguma coisa?’
‘O Ruizinho também recebeu um livro! Qualquer coisa sobre lendas! Ele costuma ver essas coisas na net! Ficou a olhar para o livro a perguntar pelo botão de enter!’
A véspera de Natal tinha chegado fria e sem cor. Anacleto estava desiludido com os filhos. Desculpava-os com a lufa-lufa do dia a dia. Apenas a filha mais velha tinha ligado a agradecer o livro usado.
Tinha acendido a lareira. Tinha por certo que as personagens dos seus livros o visitariam e encenariam para si todas aquelas histórias. O sonho tinha morrido.
Tinha acabado de receber uma mensagem. Era o seu neto a desejar bom Natal. Teve vontade de atirar o raio do aparelho para a lareira, mas o som sonoro da campainha interrompeu-o.
Abriu a porta e ficou paralisado a olhar para quem tinha na sua frente. Estavam todos ali e gritaram ao mesmo tempo ‘Feliz Natal’. Limpou as lágrimas dos olhos e sorriu.
A sala ficou cheia como antigamente. As conversas fluíam animadamente. Havia ali amor, e coincidência ou não ninguém tinha telemóvel por perto. Nem os mais pequenos! Estes estavam sentados junto da árvore de Natal. Tinham ido buscar os velhos livros que outrora pertenceram aos seus pais e viam as figuras animadamente.
‘O papá tem que nos desculpar! Na vida fazemos opções e as nossas não têm sido as melhores! Por causa disso este ano não houve nem jogos nem tecnologias nem nada eletrónico para ninguém! Livros, abraços e amor! Tudo o que o pai nos ensinou!’
Anacleto não podia estar mais feliz! Um simples livro juntou todos na mesma casa!